Este estranho objeto: o livro – e outros casos


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Como citar:
TERÇA-NADA!, Marcelo. Este estranho objeto: o livro – e outros casos. Etcetera: revista eletrônica de arte e cultura, São Paulo, v. 10, set/out. 2002. Bimestral. Disponível em:  https://marcelonada.redezero.org/este-estranho-objeto-o-livro-e-outros-casos/. Acesso em: 13 jan. 2022.


Este estranho objeto: o livro – e outros casos

“O livro, tomado como suporte, abriga as pegadas de uma história cultural que atravessa os séculos. Das cavernas aos códices, da folha impressa à tela do computador, este veículo por excelência do saber e da escrita, em sua metamorfose, foi o ponto de partida para a idealização desta exposição que, além de trazer a público os desdobramentos da oficina(2) de Ouro Preto, agrega também alguns artistas e escritores convidados, cujos trabalhos exploram as potencialidades poéticas concernentes a este obscuro objeto do desejo: o Livro.” paulo de andrade

A exposição coletiva Este estranho objeto: o livro foi realizada pelo Ateliê de Imagem e Escrita com curadoria do Grupo A4 entre os dias 12 e 31 de janeiro de 1999 na Grande Galeria do Centro Cultural da UFMG, em Belo Horizonte. A exposição foi um apanhado da produção realizada pelos integrantes do ateliê durante e após o 30o Festival de Inverno da UFMG, além de trabalhos dos convidados, totalizando 57 livros de 35 artistas.

Bem na chegada da galeria, ao assinar o livro de entrada da exposição, os visitantes se deparavam com um saco de pano cru com centenas de rolinhos de papel dentro. Do lado de fora do saco podia-se ler em letras bordadas à mão: Como se diz. Era o primeiro livro-participante da mostra. Ao pegar algum daqueles rolinhos de papel, o visitante se deparava com um ditado popular. Os seguranças do Centro Cultural foram orientados a deixar os visitantes à vontade podendo pegar, ler, levar e devolver quantos ditados quisessem. De tempos em tempos, os ditados eram repostos aleatoriamente.

Fruto de uma pesquisa/coleta, esse livro apresentava um acervo de mais de quinhentos ditados populares que, primeiro foram impressos em páginas, depois recortados de modo que cada ditado ficasse em uma tira de papel e, em seguida, foram enrolados um a um para, por fim, serem colocados na forma de rolinhos dentro do saco. Essa foi a melhor forma encontrada para se ‘publicar’ a pesquisa de ditados, levando em consideração o acesso à sabedoria de cada um deles. A publicação em forma de lista, comum aos livros de sabedoria popular, acaba fazendo que, pela grande quantidade, a força de cada provérbio se dilua. Isso acontece mesmo quando se agrupa os ditados por temas ou de outra forma. Como no livro tratado aqui, o visitante pega e desenrola os ditados um a um, essa perda de força não acontece porque o processo de se ler um novo ditado demanda um certo tempo, e o ditado que vai ser lido chega ao leitor por um sorteio, contando assim com o fator acaso, como nos biscoitos da sorte. A concepção desse livro é de Marcelo Terça-Nada!, o saco foi costurado e bordado por Angela Marques. Exemplar único.

Entrando na galeria, há três tubos de plástico com tampa de rosca, portanto impermeáveis sobre um suporte. Dentro desses, há um longo rolo de papel com poemas que, como a forma desse livro-objeto, fazem referência aos recados lançados ao mar em garrafas. É o livro Náufragos, de Daniel Costa, feito em pequena tiragem.

Dentro de uma vasilha transparente de formato como as de margarina, o livro No Calo, de Renato Negrão, é feito em camadas. A leitura se dá retirando essas camadas de dentro da vasilha, entrando dentro do livro: a primeira camada, naturalmente, é a ‘capa’ com o título e autor, xerocada em uma folha de papel do tamanho e forma da tampa. Em seguida, sob a capa, está o corpo do livro que fica embrulhado em papel de seda. Ao desfazer o embrulho, o leitor se depara com uma camada de chumaços de algodão que têm, cada um, um parafuso negro de aço cravado em seu centro. Sob essa camada, estão as páginas recortadas como a capa, com poemas visuais e não, impressos em xerox. Também realizado em pequena tiragem.

O caso desse livro e o de Daniel Costa se enquadram na categoria de livros identificada por Leo Gonçalves(3), que aponta que a criatividade de poetas em construir plasticamente seus poemas e livros objetos acaba sendo a saída encontrada por esses poetas para conseguir vender seus trabalhos, “transformando ou construindo os poemas na forma de objetos de desejo e consumo, como livros, pratos, caixa de fósforos etc.”, citando as palavras de Leo, que ainda comenta que “poesia é o que mais se faz no Brasil”, haja visto que o número de inscrições na categoria ‘poesia’ do Concurso Nacional de Literatura de BH deste ano ser quase dez vezes maior que o nas outras categorias, “todo mundo faz poesia… mas ao mesmo tempo em que a produção é tão grande, poesia é o que menos se vende nas livrarias(4).” A criatividade na forma de apresentação é, então, diferencial e meio de sobrevivência.

Cada livro possui um tempo próprio, resultado da soma do tempo no qual se passa a narrativa (psicológica/cronológica, passado/presente/futuro) e do tempo de visitação, o tempo que o leitor passa ‘dentro’ do livro, atraído pelos seus elementos específicos: tipo de papel, tipologia, cores, textura, imagens, textos etc. Um livro é como um micro-universo que, com suas particularidades, draga o leitor, seja por um breve instante, seja por horas a fio. Quantas vezes já tivemos a impressão de retornarmos de dentro do livro quando terminamos uma leitura?

Alguns livros apresentados na Galeria do Centro Cultural trabalharam com essa noção, explorando aspectos textuais, táteis e visuais do livro e de elementos afins, que o cercam, compondo a atmosfera interna do livros e seu em torno: são pequenas instalações. Como é o caso do Livro-guardanapo, de Rudolf Rotchild, montado sobre uma mesa de bar, onde também se encontravam um cinzeiro, um saleiro, uma garrafa, um copo tipo lagoinha; ao lado da mesa uma típica cadeira completava a ambientalização de ‘botequim’. Esse livro faz referência ao hábito de se usar os guardanapos dos bares para se desenhar e escrever durante as noitadas, já que, normalmente, esse é o único papel disponível.

Esse livro faz algumas inversões. Todos os elementos dessa pequena instalação eram pintados de branco, contrastando com os guardanapos que eram coloridos. O porta-guardanapos servia como encadernação mas, ao mesmo tempo, permitia que a ordem das páginas fosse alterada livremente pelos leitores (algumas inclusive desapareceram durante a exposição). Suas páginas eram impressas no computador, o que permitiu que o livro fosse feito em tiragem.

Também na fronteira com a instalação, estavam os trabalhos de Pitti, César Coelho, Mariana Nabas, Mônica Ribeiro, Roberta Freitas, Valéria Cristina Silva e o trabalho Chegou para contar, livro de parede de Marcelo Terça-Nada! e Ângela Marques.

A materialidade do objeto livro é explorada pelos livros feitos por Joice Saturnino, que tem extensa pesquisa na área de papel artesanal e construiu livros que se forjavam com uma longa existência. O aspecto envelhecido, formato e tipo de encadernação remetem aos livros do século XIV. Seus livros foram apresentados na exposição dentro de pequenas vitrines de vidro, o que gera uma falsa autenticação desses objetos como obras raras, em referência a como é feita a apresentação em museus. Esse tipo de apresentação/montagem gera o incômodo de não permitir que se manipule o livro mas, de acordo com Waltércio Caldas, artista que tem longa trajetória no campo do livro-objeto, se expor um livro sobre um suporte e dentro de uma vitrine acaba remetendo a uma suspensão do tempo: como se o livro tivesse sido deixado ali daquela maneira, aberto, no caso do instante congelado estar dentro de um intervalo na leitura do livro, ou fechado, se esse instante for congelado após o término da leitura/visitação(5).

Além desses livros e de outros tantos livros-objeto presentes, a exposição também apresentou livros artesanais de pequenas editoras ou de produção caseira que, se de um lado não diferem muito da forma convencional do objeto livro, diferem pelo modo como são produzidos e distribuídos. Eram livros feitos recentemente, impressos em off-set, xerox ou no computador. A produção desse tipo de livro foi bastante significativa nas décadas de 70 e 80 dentro do movimento chamado poesia marginal, onde os próprios poetas faziam os livros em mimeógrafos – opção de baixo custo na época – e vendiam os exemplares, passando de mesa em mesa nos bares de suas cidades, além de outros lugares/situações alternativos ao sistema convencional das editoras-distribuidoras-livrarias, como feiras livres, praças, praias, saraus, filas de cinema e teatro etc. Atualmente, a produção caseira de livros conta também com as lojas, livrarias, cafés e bazares presentes no circuito cultural (cinemas, museus, teatros etc.) e que aceitam esse tipo de produção sob consignação.

Outra categoria que esteve presente na exposição foi a dos ‘livros de artista’ que derivam e/ou funcionam como diários e cadernos de anotações e trazem projetos, ideias, memórias, estudos. Cúmplices do processo criativo de seu autor, alguns desses livros são registro detalhado de fases, obras e pensamento do artista que o produziu, como é o caso do livro feito por Lygia Clark e os de Arthur Barrio.


Referências Bibliográficas
CLARK, Lygia. Lygia Clark. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980.

Catálogos
FARIAS, Aguinaldo. Livros – Waltercio Caldas. Belo Horizonte: MAP, 2000/ Rio de Janeiro: MAM, 1999.

DOCTORS, Marcio, MINDLÍN, José e SACCA, Lucilla. Livro Objeto: A fronteira dos vazios.

Volante
ANDRADE, Paulo de. Este estranho objeto: o livro. Belo Horizonte, 1999.
(Exposição coletiva realizada no Centro Cultural da UFMG, Belo Horizonte, MG em Janeiro de 1999.)


Notas

1) Este artigo foi originalmente escrito como parte da monografia “Livro-Objeto/Poesia Objeto” de Marcelo Terça-Nada!, apresentada no ano de 2000 na Escola de Belas Artes da UFMG dentro do PAD Artes Plásticas e publicado na Revista Etcetera#10 em 2002.

2) A oficina citada é “As lembranças são outras distâncias: Ateliê de Imagem e Escrita” realizada durante o XXX Festival de Inverno da UFMG.

3) Leo Gonçalves é poeta, livreiro, distribuidor, pesquisador e integrante da equipe editorial da Editora Crisálida, de Belo Horizonte, MG.

4) As declarações citadas nesse parágrafo são de entrevista realizada com Leo Gonçalves para essa monografia.

5) CALDAS, Waltércio. Afirmação feita durante palestra na Escola de Belas Artes da UFMG, quando foi indagado sobre a montagem da exposição “Livros”, com livros-objeto de sua autoria, realizada no Museu de Arte da Pampulha, entre março e abril de 2000 em Belo Horizonte, MG. Segundo Waltércio, a montagem teve de ser realizada utilizando vitrines para proteção dos livros, já que estes, ou eram feitos em tiragem baixíssima, em torno de três exemplares cada um ou, em alguns casos, não eram para ser manuseados e a exposição previa uma grande visitação.