A escrita na obra de Marcel Broodthaers


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Como citar:
TERÇA-NADA!, Marcelo. A escrita na obra de Marcel Broodthaers. Etcetera: revista eletrônica de arte e cultura, São Paulo, n. 12, mai/jun. 2003. Bimestral. Disponível em: https://marcelonada.redezero.org/a-escrita-na-obra-de-marcel-broodthaers/. Acesso em: 13 jan. 2022.


A escrita na obra de Marcel Broodthaers

Marcel Broodthaers nasceu em Bruxelas em 1924. Teve intensa ligação com os surrealistas durante a juventude, o que mais tarde vai influenciar bastante sua obra. Antes de se enveredar pelas Artes Plásticas, foi escritor, repórter fotográfico e guia de exposições.

Criador de objetos enigmáticos em que a poesia está sempre presente, o seu trabalho incorporou quase todos os meios disponíveis na época em que viveu: a pintura, o desenho, a escultura, o cinema, os livros, as instalações, objetos do seu ambiente cotidiano, a fotografia, a escrita, as placas de sinalização industrial.

Até seus 40 anos de idade foi um poeta com interesse nas artes visuais que, de tempos em tempos, escrevia textos críticos. Começou sua carreira de artista plástico, em 1964, quando “imortalizou” em gesso os últimos cinquenta exemplares de sua coletânea de poesia recentemente lançada, Pense-bête1 e as expôs como escultura.

A partir daí, começou uma série de obras concebidas com casca de ovos, mexilhões e batatas fritas (comidas típicas da Bélgica). Trabalhou ao mesmo tempo produzindo variados objetos e pinturas que confrontam as representações pictórica (visual) e linguística (verbal).

Obra de Marcel Broothaers
Le corbeau et le renard, 1968

Nessa mesma época utilizou o processo da emulsão fotográfica sobre tela, confrontando o objeto real com o fotográfico, como é o exemplo da obra “Le corbeau et le renard” (1968), onde uma carta manuscrita saindo de uma máquina de escrever é colocada à frente de uma fotografia que mostra Broodthaers escrevendo à mão essa mesma carta.

Na obra de Marcel Brodthaers, o que é, pode não ser e vice-versa. Aliás, essa herança de seu conterrâneo René Magritte é, não só assumida sem nenhum problema por Broodthaers, como transformada em homenagem em trabalhos como A maldição de Magritte, de 1966, ou na adoção do cachimbo como um dos elementos de sua iconografia pessoal, exemplificado no trabalho “Modelo: a vírgula” (1968), onde a vírgula se transforma na fumaça do cachimbo.

Modelo: a vírgula, de Marcel Broothaers
Modelo: a vírgula, 1968

Entre 1968 e 1972, Marcel Broodthaers experimenta uma nova possibilidade de impressão utilizando o plástico embutido. Concebeu cerca de sessenta placas realizadas segundo a técnica da sinalização industrial. Se fôssemos tentar encaixar essas placas em alguma categoria das artes plásticas, poderíamos situá-las na fronteira entre o objeto e o quadro.

Realizadas como múltiplos, reproduzidas de modo manufaturado em tiragem de 7 cópias, suas placas seguem a linha dos trabalhos onde a imagem e a escrita se cruzam. De acordo com Thomas McEvilley, “o poeta se tornou um artista para subverter a matéria prima dos escritores: o alfabeto”.

Le sous-sol, Marcelo Broodthaers
Le sous-sol, 1970

Numa dessas placas, por exemplo, vemos uma paisagem simplificada, duas árvores à esquerda, algumas nuvens no céu, uma linha representando o chão, como num desenho de criança. Abaixo do chão, temos escrito “E SOUS-SOL”, para completar o título da placa, falta a letra “L” que está acima do chão. Pelo modo como está desenhada (somente com as linhas de contorno), por sua verticalidade, tamanho e espessura a letra “L”, aqui, tem referência clara com as árvores. Seguindo com o olhar indo das árvores até o “L”, podemos perceber que o chão é interrompido, temos algumas formas orgânicas e entre elas canais que ligam o céu ao subsolo, é como se o céu vazasse o chão. Se repararmos bem, no primeiro ponto onde o chão é interrompido está uma vírgula. Toda escrita desenha uma linha, que por vezes é padronizada pelos cadernos pautados. A vírgula rompe essa linha e vai residir no subsolo da escrita. Será que o ritmo proposto pela pontuação (vírgula, reticências etc) é que liga o mundo concreto ao subentendido?

Academia 1, Marcelo Broothaers Academia 2, Marcelo Broothaers
Academia I e II, 1968

Nas placas Academia I e II, temos de novo uma irônica brincadeira com a linguagem. Em Academia I, temos a placa e o texto em preto, apenas o título do trabalho e as palavras com os nomes das figuras geométricas estão em branco. Na Academia II, a placa e o texto estão em branco e os acentos, vírgulas e outros sinais de pontuação estão em destaque, em preto. Ou seja nas duas placas, numa primeira vista, quase não há nada para se ver – a característica da leitura rápida de placas de sinalização comuns foi neutralizada pelo artifício de se dar destaque a elementos não-funcionais. Por outro lado, o texto das placas é extremamente imagético. De sua leitura emergem diversas imagens literárias: associações desconcertantes entre elementos concretos e figuras geométricas em cores primárias, um universo fantasioso vai se configurando. As imagens nessa obra surgem do texto literário se contrapondo com o preto-e-branco-material das placas.

Texto das placas – Academia I e II

Um cubo, uma esfera, uma pirâmide obedecendo às leis do mar. Um cubo, uma esfera, uma pirâmide, um cilindro. Um cubo azul. Uma esfera branca. Uma pirâmide branca. Um cilindro branco. Não se movem mais.

Academia

Silêncio. A espécie camufla os olhos tagarelas. Um cubo verde. Uma esfera azul. Uma pirâmide branca. Um cilindro preto. Como os sonhos que são pouco lembrados; mundos onde tubarão, faca, fogão são sinônimos. Um cubo preto. Uma pirâmide preta.

Uma esfera e um cilindro pretos. Eu prefiro fechar as pálpebras e entrar na noite. A tinta do polvo descreverá as nuvens e a terra longínqua. Uma esfera amarela. Uma pirâmide amarela. Um cubo amarelo que funde na água, o ar e o fogo.

Escultura, Marcelo Broothaers
Escultura, 1974

Do lado de fora de uma maleta cheia de tijolos está escrito “escultura”. Será que a palavra diz sobre o que há dentro da maleta? A escultura em questão seria os tijolos? Ou os tijolos serviriam para se construir uma futura escultura? O que é a escultura? A própria maleta?

A obra “La salle blanche” é uma reconstrução em madeira da sala do apartamento em que Broodthaers morou em Bruxelas. Uma reprodução em tamanho natural de um típico apartamento belga do século XIX. Sobre toda a superfície das paredes e em algumas partes do chão temos diversas palavras escritas em preto.

luz sombra sol nuvem

Fico pensando se a casa de um poeta não seria assim, as paredes cobertas de palavras, que evocam inúmeras imagens e associações. Para a “sala branca”, Broodthaers utiliza diversas palavras que pertencem a um modelo tradicional de artes plásticas:

figura paisagem composição estilo nus perspectiva

ou de forma ácida e bem humorada:

valor ladrão marchand galeria museu porcentagem colecionador cópia

La salle blanche, Marcelo Broothaers
La salle blanche, 1975

Marcel Broodthaers morreu em Colônia, em 1976, aos 52 anos de idade, no auge dos movimentos da arte conceitual e de contracultura.

Em apenas 12 anos de percurso nas artes plásticas, realizou exposições individuais em Bruxelas, Paris, Berlim, Düsseldorf, Milão, Amsterdã, Londres, Nova Iorque, Zurique e Los Angeles. Participou da 4a (1968), 5a (1972) e 7a (1982) edições da Documenta de Kassel e das edições de 1976 e 1986 da Bienal de Veneza. No Brasil participou da 22a Bienal Internacional de São Paulo com uma Sala Especial, em 1994, e da exposição coletiva ALÉM DOS PRECONCEITOS: A experiência dos anos sessenta, que reuniu 125 artistas do mundo todo no Paço Imperial – Rio de Janeiro, 2001, e no Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2002.

Le cheminee d’usine, Marcel Broothaers Le Peintre et le renard, Marcel Broodthaers
Le cheminee d’usine, 1974 e Le Peintre et le renard, 1968

*Texto publicado na Revista Etcetera #12 – Artes Visuais


Notas

1. Como bem comentado por Clotilde Lainscek, a expressão pense-bête significa “qualquer coisa destinada a nos lembrar o que temos a intenção de fazer” e “objeto com um bloco ou uma superfície, onde anotamos o que temos a fazer“.


Referências bibliográficas

Livro

WOOD, Paul. Arte Conceitual in Coleção Movimentos da Arte Moderna. São Paulo: Cosac&Naify, 2002. pgs. 57-59

Catálogos

AGUILAR, Nelson (org.), Salas Especiais in 22a Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1994.

BROODTHAERS, Marcel. La Salle Blanche, l’ensemble des Plaques et l’Entrée de l’Exposition (catálogo/jornal) in 22a Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo, 1994.

BROODTHAERS, Marcel. Le Maçon – L’architecte est absent. Bélgica: Fundation pour L’Arquiteture/ Imschoot, 1991.

Periódicos

BAKER, George. This is not a advertisement – Marcel Broodthaers’ Section Publicite. ArtForum Internacional v. 34 Maio 1996. p. 86-9+

BROODTHAERS, Marcel. Le corbeau et la renard. Connaissance des Arts n.473/474 Julho/Agosto 1991. p 73 (reprodução)

McEVILLEY, Thomas. Another alphabet: the art of Marcel Broodthaers. ArtForum Internacional v. 28 Novembro 1989. p. 106-15