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Como citar:
TERÇA-NADA!, Marcelo. Banquete de Poesia. Etcetera: revista eletrônica de arte e cultura, São Paulo, v. 11, mar/abril. 2003. Bimestral. Disponível em: https://marcelonada.redezero.org/banquete-de-poesia/. Acesso em: 13 jan. 2022.
Banquete de Poesia
Um banquete é composto de muita comida, muita bebida, muitos talheres, muitos pratos, muitas garrafas, muitos copos: fartura. Normalmente essa fartura é para poucos, fica restrita e é para ser consumida num tempo restrito, o tempo de uma refeição prolongada, de uma reunião-refeição.
Realizado pelo Ateliê de Imagem e Escrita em julho de 1998, no Largo das Flores em Ouro Preto, MG, durante o XXX Festival de Inverno da UFMG, Banquete de poesia foi uma instalação que consistia de uma enorme mesa de aproximadamente cinco metros de comprimento por um e meio de largura por um de altura, montada na rua, próxima a um chafariz. Esta mesa tinha uma leve inclinação do lado esquerdo para o direito para que os elementos do banquete pudessem ser vistos mesmo à distância, por uma pessoa que passasse do outro lado do largo, por exemplo.
Os comes, bebes e todos os outros elementos de um típico banquete foram construídos livremente pelos integrantes do Ateliê como objetos poéticos. Assim quem quis se dedicar às comidas pôde pensar (e fazer) comidas-poema, quem quis se dedicar aos pratos e talheres, o fez. E o banquete foi se formando com esses objetos sendo dispostos sobre uma enorme toalha, sobre uma mesa na rua, aos olhos de quem passasse por ali (brevemente também às mãos e bocas de quem se aventurasse).
Pão com recheio de uma escrita minúscula em caneta de tinta preta, sopa de gilete e letras, bala delícia embrulhada e escrita, prato-poema-colagem, prato-poema-visual desenhado diretamente na toalha, garrafas recheadas hora de pequenos papéis bilhetes-fragmentos-e-poemas, hora de cores, garrafas com cobertura de palavra, lançadas ao mar? O banquete ficou pronto ao meio dia, a mesa estava posta. E ficaria ali para quem quisesse se servir até a manhã do dia seguinte. (Lembrando que em tempos de Festival as vinte-e-quatro horas do dia são intensamente vividas, o que gera um ‘esticamento’ desse período.)
Logo que acabamos de compor a mesa com aquela série de poemas-objeto e intervenções poéticas deixamos o banquete e fomos almoçar. Durante a tarde, o ateliê voltaria às atividades internas e, como foi previamente combinado, ninguém iria ficar ali vigiando a mesa, para que as pessoas ficassem bem à vontade em se ‘servir’. O máximo que faríamos seria convidar/ provocar: “Você viu que está tendo um banquete de poesia no largo do Cine Vila Rica? Pois é, vá lá e se sirva à vontade…”, quando encontrássemos algum amigo pelas ruas da cidade.
Ao preparar os objetos ou ao intervir nos alimentos, tivemos o cuidado de construir objetos autônomos, que ‘funcionassem’ também fora do contexto do banquete para que as pessoas realmente os pudessem levar consigo, consumi-los em separado e/ou reusá-los em outro local ou situação. Como no caso das Pistas, houve uma atenção em se criar objetos que funcionassem independentemente do tempo e modo de visitação. A instalação funcionava tanto pelo conjunto do banquete quanto pela visitação individual dos seus elementos e a retirada de qualquer dos objetos não desfalcaria a leitura do todo.
Criar um objeto e deixá-lo no meio da rua é um exercício de desapego, do objeto e do ego de criador: ao virarmos as costas aquele trabalho se torna anônimo (o objeto não estando assinado, claro!). No caso do Banquete, esse caráter anônimo e o fato de ninguém estar vigiando a instalação gerava uma grande liberdade para visitação e interferências naquele(s) trabalho(s).
Apareceram novos elementos na mesa, sendo que um merece destaque especial: um guardanapo sobre a toalha com vários macarrões de letrinha por cima, aparentando estar jogadas ali ao acaso. Quando se pegava e suspendia o guardanapo várias das letras caíam do guardanapo e outras, que estavam coladas, faziam surgir um poema, que, infelizmente, não foi registrado. Mas o ‘fenômeno’ que torna esse objeto especial é o de ver o poema surgir frente aos olhos, num susto; esse poema-fenômeno só vai se repetir de acordo com a reação do ‘leitor’, dependendo se ele vai ficar com o poema para si, se vai recolocar as letras caídas sobre o guardanapo apagando temporariamente o poema sob um novo arranjo de letras, ou se nem vai dar muita atenção e vai deixar o guardanapo-poema revelado sobre a mesa de qualquer maneira. De todo jeito, esse poema-objeto só acontece uma vez e, depois, se transforma em outra situação-poema, em outro objeto, podendo até passar desapercebido se não for manuseado.
“Ah! Eu vi, mas pode mexer?”
Foi observado um fato curioso, durante as passagens dos integrantes do Ateliê pelo Banquete (que não intervinham no modo como as pessoas participavam da instalação, a não ser estimulando o manuseio): várias pessoas passavam pela mesa e olhavam tudo muito curiosas, mas não tocavam em nada. Mesmo sem um vigia para apitar, mesmo sem nenhum aviso de ‘não toque’, sem nenhuma faixa ou cordão de isolamento. O mais interessante é que esse fato acontecia tanto com pessoas da cidade de Ouro Preto quanto com participantes do Festival – pessoas de várias partes do país, que convivem, estudam e/ou trabalham com arte. Ressaltando que estávamos com um trabalho fora de um local institucionalizado, como um museu ou uma galeria, e que a programação do Festival inclui uma larga agenda de eventos de diversas áreas artísticas em diversos espaços da cidade, o que faz, a princípio, que o cotidiano dessa cidade esteja habituado a conviver com arte. E mesmo assim, prevaleceu por muitas vezes o ‘não me toque’ do objeto artístico, mostrando que ainda existe um forte afastamento entre sujeito/objeto e que isto ainda está bastante embutido na arte.
Naturalmente, diversas coisas desapareceram, mas não temos um balanço certo de quantas ou de como ficaram as que sobraram, pois, como estava previsto quando concebemos a instalação, às oito horas da manhã, os funcionários do Festival iriam desmontar a mesa e retirar tudo dali. Sabemos que pela madrugada a notícia daquele banquete inusitado correu pelas ladeiras a fora, boca-a-boca e, como nem todas as pessoas têm problemas para lidar com a liberdade, “lá pelas seis da manhã a mesa estava como se tivesse acontecido uma festa ali, estava tudo revirado e cheio de garrafões de vinho…” de acordo com a descrição de um amigo que passou pelo Largo voltando pra casa.
Após o Festival de Inverno, já de volta à Belo Horizonte, o Atelier de Imagem e Escrita organizou a exposição coletiva Este estranho objeto: o livro, no Centro Cultural da UFMG.
*Publicado originalmente na Revista Etcetera #11 – Artes Visuais
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