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Como citar:
TERÇA-NADA!, Marcelo. Livro-objeto. Etcetera: revista eletrônica de arte e cultura, São Paulo, v. 9, jul/ago. 2002. Bimestral. Disponível em: https://marcelonada.redezero.org/livro-objeto/. Acesso em: 13 jan. 2022.


Livro-objeto

“Vivemos, sim, um esgotamento dos termos tradicionais ‘pintura’, ‘escultura’, ‘desenho’. Não é uma questão de estarem mortos ou não como forma de expressão, estão é cansados. Não dão mais conta da complexidade atual do mundo. (…) A precisão ou nitidez de campos não interessa mais. O que interessa, hoje, é a diluição de fronteiras ou uma nova precisão que não teme incorporar o que está fora de definição, fora do controle, fora do saber.”
Marcio Doctors


El libro de los muertos (1995/96) – Piti

Os livros-objeto não se prendem a padrões de forma ou funcionalidade, extrapolam o conceito livro rompendo as fronteiras comumente atribuídas aos livros de leitura para se assumirem como objetos de arte. São objetos de percepção. Normalmente, são obras que dialogam com o campo da escultura, produzidos enquanto múltiplo, em tiragens que variam conforme a complexidade da produção, custo e/ou proposta do artista. Podem ser feitos como peça única, podendo chegar a tiragens maiores, ou mesmo serem produzidos em tiragens reduzidas. Resistem na contramão em relação aos veículos reproduzidos massivamente(2).

Essas obras poderiam representar uma das evoluções possíveis, e perfeitamente aceitáveis, da forma convencional do livro, que prevaleceu desde Gutenberg, e que o livro-objeto viria complementar, sem, evidentemente, substituí-la. Haja visto, por exemplo, a introdução da terceira dimensão, ou o que tem sido feito no livro infantil, em que o livro se desdobra, ao ser aberto, num conjunto que desperta a imaginação da criança e volta a ser um simples livro quando se fecha(3).


Capa do livro Ausbrennen des LandKreises Büchen IV (1974) – Anselm Kiefer

No livro-objeto, a narrativa literária é substituída por uma narrativa plástica. Sua importância se dá exatamente porque atravessamos um momento de amolecimento de fronteiras. As estruturas atreladas ao pensamento tradicional da representação foram ficando enfraquecidas, diluindo seus contornos e foram emergindo novas formas de expressão, ou melhor, antigas formas de expressão foram retomando sua contundência, definindo outros campos. As categorias tradicionais vão, aos poucos, perdendo sentido enquanto expressão necessária da vida e do mundo, passando se a optar por formas expressivas que não temem sobrepor, juntar, combinar o que antes parecia impossível de estar junto. Esse é o caso do livro-objeto. A estrutura livro passa a ser capturada pela estrutura plástica e vemos nascer uma outra forma expressiva. O livro-objeto é um cruzamento de forças que estabelece um novo campo, ao exorbitar os limites e ao se configurar nos vazios criados tanto pela literatura quanto pelas artes visuais(4).


Matisse talco (1975) – Waltércio Caldas

Na construção dos livros-objeto, vários aspectos do objeto livro são explorados plasticamente, como o fato de que um livro proporciona prazer intelectual através de seu texto, mas também prazer táctil e visual. O livro pode ter uma leitura contínua, que desenha uma linha, da capa à sua última página, mas que mantém uma relação de interatividade com o leitor, que poderia ser chamado de manipulador, regente daquela orquestra de páginas, que, hora abre aleatoriamente o livro e pode fazer uma leitura ao acaso, como em um livro de poemas,

o melhor dos livros de poemas
é que sempre falta algum pra gente ler
(5)

hora é guiado pelas sinalizações gráfico(6)/verbais(7) da narrativa do livro, como o maestro que é regido pelo timbre dos instrumentos. Veja que o que se estabelece entre objeto/leitor é um diálogo semelhante ao que acontece quando se visita a obra Os Bichos, de Lygia Clark, onde a estrutura dos Bichos reage, com seus movimentos próprios e definidos, às estimulações do espectador(8), como um organismo vivo (CLARK, 1998. p121).

No Brasil, a experiência de livros-objeto nasce nitidamente do encontro entre poetas e artistas visuais nos períodos Concreto e Neoconcreto (final dos anos 50 e começo dos anos 60). A poesia concreta foi fundamental para sublinhar aspectos formais e sonoros das palavras, fazendo com que se descolassem da sintaxe tradicional e inventando uma outra sintaxe poética-visual para o texto. Como desdobramento das idéias desse período, os livros-objeto de Augusto de Campos e Julio Plaza (Poemóbiles, Objetos Poemas e Caixa Preta) são excelentes exemplos. Durante o Neoconcretismo, essas experiências são radicalizadas, explorando a forma enquanto narrativa.

Outro momento fundamental nessa trajetória histórica é a obra editorial de Julio Pacello, um grande artista gráfico argentino-brasileiro, foi o primeiro a editar álbuns de gravura brasileira e livros como objetos de arte. Editor de rara sensibilidade, convida poetas e artistas plásticos a trabalharem juntos, conseguindo resultados da mais alta qualidade do livro enquanto objeto.

Durante a década de 70, temos uma explosão de livros-objeto. A própria condição da arte nesse período produziu um transbordamento de limites, fazendo com que os artistas se lançassem em múltiplas direções, explorando as mais diferentes possibilidades de expressão.

Diversos artistas brasileiros produziram livros-objeto, como Arthur Barrio, Lygia Clark, Antonio Dias, Waltércio Caldas, Mira Schendel, Alex Hamburguer, Delson Uchoa, Augusto de Campos, Julio Plaza, Liuba, Renina Katz, Lygia Pape.


Notas:

(1) Este texto foi originalmente escrito como parte da monografia “Livro-Objeto/Poesia Objeto” de Marcelo Terça-Nada!, apresentada no ano de 2000 na Escola de Belas Artes da UFMG dentro do PAD Artes Plásticas e publicado na Revista Etcetera#9 em 2002.
(2) CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL. Livres Objetos. Rio de Janeiro: CCBB, 1994.
(3) MINDLÍN, José. Livros-Objeto: A fronteira dos vazios. Rio de Janeiro: CCBB, 1994.
(4) DOCTORS, Marcio. A fronteira dos vazios. Rio de Janeiro: CCBB, 1994.
(5) Poema de Leo Gonçalves
(6) Exemplos de sinalização gráfica: setas, cores, mapas de leitura, marcas etc.
(7) Exemplo de sinalização verbal: uma frase, ou clímax de uma ação interrompidos pelo final da página e continuando na página seguinte; reticências, indicações como “vá para a página tal”, numerações, títulos, ABCDE…
(8) CLARK, Lygia. Lygia Clark in Os Bichos. Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1998. p.121
(9) DOCTORS, Marcio. A fronteira dos vazios. Rio de Janeiro: CCBB, 1994.


Referências Bibliográficas

CLARK, Lygia. Lygia Clark. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980.

______. Lygia Clark in Os Bichos. Barcelona: Fundación Antoni Tàpies, 1998.

RIBEIRO, Marília Andrés e PEDRO, Fernando (org.). Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/Arte e Fundação João Pinheiro, 1997.

CACCIARI, Massimo e CELANT, Germano (org.). Anselm Kiefer – Venezia Contemporâneo. Milão: Charta. 1997.


Catálogos

CALDERA, Paulo. De Gutenberg à Informação Virtual. Belo Horizonte: UFMG, 2000.

FARIAS, Aguinaldo. Livros – Waltercio Caldas. Belo Horizonte: MAP, 2000/ Rio de Janeiro: MAM, 1999.

DOCTORS, Marcio, MINDLÍN, José e SACCA, Lucilla. Livro Objeto: A fronteira dos vazios. Rio de Janeiro: CCBB, 1994.