***
Paisagem: uma rua tranquila, num bairro calmo, numa grande cidade brasileira. Uma antiga casa de esquina com suas portas e janelas tampadas por tijolos e cimento, após longo tempo de desuso, lançada à condição de invisibilidade. Das poucas pessoas que passam por ali, quantas ainda percebem aquele lugar?
***
Há um tempo atrás escrevi um texto chamado Abandono poético[1] onde foram costuradas de maneira fictícia várias histórias sobre a potência poética de se abandonar livros em locais públicos. Fazer livros para se deixar em bancos de praça, como uma garrafa jogada ao mar. Livros lançados no fluxo da cidade, flutuando entre os inúmeros acasos possíveis para, talvez, encontrar os olhos atentos de um passante, alcançar suas mãos, abrir um parêntesis temporal no seu cotidiano e trazer o passante à condição de leitor. O livro ao encontrar seu hipotético leitor emerge da condição de abandono, é içado do universo de objetos anônimos da cidade para convidar o agora leitor a um mergulho, em seu texto, páginas, imagens. Pode ser que o passante-leitor, após um certo tempo dentro do parêntesis da leitura, lance novamente o livro no mar-abandono, deixando-o no mesmo banco de praça ou em outro lugar para novos encontros-acasos.
***
Imagens de azulejos impressas em papel jornal são
coladas em muros de casas e lotes abandonados
Poro[2]
***
Se o interesse na poética do abandono já vem de longa data, foi no ano de 2009 que fui presenteado com a palavra Desabandonar pela amiga Renata Marquez, quando ela e Wellington Cançado foram levados para visitar o local onde uma intervenção urbana tinha sido feita pelo Poro havia algumas semanas. Era a primeira vez que levávamos alguém para visitar uma intervenção que tínhamos feito, até porque, a maior parte dos trabalhos do Poro é efêmero demais para permitir uma visita.
***
Depois de chegarmos numa calma rua do bairro Concórdia, em Belo Horizonte, onde estava a antiga casa que havia recebido a intervenção, mostramos o trabalho a eles, conversamos sobre aquele bairro e sobre como, mesmo estando tão perto do centro, ele ainda mantinha sua tranquila característica residencial.
Falamos sobre a cidade, suas transformações, sobre como o cotidiano invisibiliza muitos de seus aspectos. Quatro pessoas numa rua onde não passa (quase) ninguém, olhando uma casa há muito sem habitantes. E Renata lança no ar:
– O que vocês fazem é desabandonar os espaços.
***
Mas o que seria desabandonar? Como seria o ato ou efeito desse verbo? É possível chegar a um desabandonamento, mesmo que temporário? O verbo e o substantivo poderiam estar conectados com o desprendimento e o acaso do abandono poético? O desabandonamento poderia significar uma mudança de estado, saindo de um fluxo para outro? Após a garrafa lançada ao mar ser desabandonada, começariam os acasos provocados pelo encontro com ela e seu conteúdo. Um mapa para um tesouro? Uma carta sobre um misterioso naufrágio? Um bilhete que atravessou a corrente do tempo trazendo palavras de alguém que escreveu séculos atrás para finalmente serem lidas agora. Mas seria possível um desabandonamento sem o desprendimento anterior do abandono? Ser mais que um resgate, um deslocamento. Uma ressignificação para além dos apagamentos do cotidiano, da rotina, do ordinário…
***
Desabandonar. verbo.
- amparar, assistir, cuidar, manter, proteger <d. o imaginário>
- apreciar, valorizar <d. velhas amizades>
- manter, persistir <d. o sonho>
- habitar, ocupar, povoar <d. um terreno, uma propriedade>
- cuidar, interessar-se, lembrar <d. uma tarefa>
- continuar, ficar, permanecer <d. o país>
- recuperar com afeto o que parecia não importar mais <d. objetos que estavam esquecidos>
- desabandonar-se, liber(t)ar-se, recolher-se, aceitar, salvar-se, vencer <d.-se com ousadia>
***
Ao ver a fachada daquele antigo imóvel de esquina, onde a presença ornamental dos Azulejos de Papel tirava momentaneamente sua condição de invisibilidade, vinha à tona o tempo em que a casa estava desabitada e abandonada ali. Os azulejos, por serem de papel, se deterioravam à medida que o tempo passava, se arruinando sob a chuva e o sol. Explicitando o que acontecia, num ritmo muito mais lento, com a própria casa.
***
“Nesse território sem lugar, os frágeis azulejos de papel reassentam inesperadamente as histórias dos espaços domésticos preexistentes, revestem a destruição e impermeabilizam o abandono. Seus diminutos 15 x 15 centímetros acrescentam à enormidade desmedida da metrópole um imaginário narrativo e uma ficção histórica, ainda que efêmera.”
Renata Marquez e Wellington Cançado
***
desapagamento de imaginários, de modos de viver, de formas de ser na cidade.
convite ao olhar
***
olhar a cidade, pensar a cidade
***
Desabandono . substantivo.
- permanência <seu d. era aguardado com euforia>
- abrigo, amparo, proteção <sob aquele d. ele pôde passar a noite tranquilamente>
- defesa, insistência, mantenimento, manutenção, preservação, persistência <insistiu que o d. era a melhor solução>
- capricho, cuidado, desvelo, esmero <toda praça merece d.>
- atenção, continuação, dedicação, diligência, empenho, interesse, preocupação, prosseguimento, zelo <d. de rumo>
- recolhimento, tonificação <deixou-se ficar em seus braços, em profundo d.>
***
Desabandonar a fachada de uma casa, como quem encontra um livro num banco de praça.
***
Fazer isso em várias outras fachadas e muros de casas abandonadas.
***
Em muitas ruas, bairros, cidades, países.
***
Distribuir azulejos de papel, para que outras pessoas também possam desabandonar espaços.
***
Durante cinco anos, 50 mil azulejos de papel foram impressos, instalados, distribuídos. Muitos se apagaram com o sol. Outros se deterioraram com a chuva. Alguns ainda habitam o espaço interno de casas. Desse todo de impressos, uma parte continua a contar histórias de desabandonamentos. Seja a partir da memória de quem os viu, de relatos, textos ou de imagens fotográficas. Continuam a instigar imaginações e potências poéticas.
***
Desabandonamento. substantivo
ato ou efeito de desabandonar (2019)
- montagem de estrutura sólida ou imaginária; despertar de atenção; desarruinamento;
- p.ext. criação de qualquer realidade social ou subjetiva; ressurgimento, realização intencional <d. do que é importante numa cidade >;
- significados a serem forjados em práticas e colaborações diversas.
***
[1] Texto publicado originalmente na revista Piseagrama #5 em 2013. Disponível em:
www.marcelonada.redezero.org/abandono-poetico
[2] Poro é uma dupla de artistas formada por Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada! Atua desde 2002 com a realização de intervenções urbanas e ações efêmeras. www.poro.redezero.org
Como citar:
TERÇA-NADA, Marcelo. Desabandonamento. In: LINKE, Ines; KRUCKEN, Lia (org.). Verbetes Moventes. Salvador: Duna e Tiragem, 2021. Disponível em: https://marcelonada.redezero.org/desabandonamento/. Acesso em: 13 jan. 2022.