Pistas – poéticas do objeto


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Como citar:
TERÇA-NADA!, Marcelo. Pistas: poéticas do objeto. Etcetera: revista eletrônica de arte e cultura, São Paulo, v. 14, set/out. 2003. Bimestral. Disponível em: https://marcelonada.redezero.org/pistas-poeticas-do-objeto/. Acesso em: 13 jan. 2022.


Pistas – poéticas do objeto

pista nº1 - marcelo terça-nada!
pista nº1 – marcelo terça-nada!

Aqueles objetos pretenderam alguma permanência num lugar que é naturalmente de passagem, todos tinham marcas de mãos atuantes e/ou memórias de caminhos: eram sapatos já bem usados ou feitos especialmente para serem deixados naquela parte do movimentado canteiro central da Avenida Álvares Cabral em Belo Horizonte, MG. Traziam em si uma história: um poema, um bilhete, fragmentos, interrogações. Objetos lançados no meio do cotidiano, pretenderam provocar encontros, instigar as pessoas que ali passavam, anunciar.

Nos primeiros dias, os passantes desatentos provavelmente devem ter achado que aquela consecução de sapatos abandonados era pura coincidência, ou nem devem ter reparado nada. Mas a reincidência deve tê-los incomodado ou pelo menos os deixado curiosos. Com alguma atenção, descobririam o que os passantes mais atentos já tinham descoberto: cada um daqueles objetos era um universo rico e tinha sido cuidadosamente preparado para estar ali, lançado ao acaso; cada um daqueles sapatos traz um trajeto pessoal. Foram um tipo de demarcação de território. Preparavam o terreno para a obra que viria ocupar aquele espaço nos próximos dias, preparavam o imaginário dos frequentadores daquele não-lugar para as questões envolvidas na obra que viria. As pequenas obras-intervenção que mais tarde chamamos de pistas buscaram puxar à tona e manter pairando no ar questões da escultura Descalços. Foram uma espécie de instrumento de leitura que antecedeu o objeto.

pistas nº6, marcelo terça-nada!pistas nº6, marcelo terça-nada!
pistas nº6, marcelo terça-nada!

Na concepção das pistas, buscamos explorar o potencial poético do sapato, enquanto símbolo, enquanto suporte, enquanto metáfora, enquanto objeto estético. Ao conceber cada objeto-pista estávamos conscientes do ritmo apressado daquele canteiro central e sabíamos que os diferentes modos como aqueles objetos seriam visitados trariam diversas possibilidades de leitura: um olhar rápido tem uma leitura fragmentada, um olhar mais cuidadoso, uma leitura um pouco mais elaborada e um olhar acompanhado do manuseio do objeto, uma leitura mais complexa. A visitação a um objeto se assemelha à visitação a um livro: o ritmo e modo como se manuseia o objeto são elementos que fazem parte da leitura. Ao criar uma pista devíamos prever essas várias possibilidades de leitura: a pista já deveria oferecer algo para uma pessoa que tivesse uma passagem rápida por ela, uma pessoa com leitura tipo outdoor, mas deveria oferecer mais a quem pousasse sobre ela, essa pessoa teria o que levar consigo: um poema, um bilhete ou uma dúvida que fosse. De outras experiências, sabíamos que uma pista que fosse apenas um sapato com uma carta não funcionaria mais que uma vez, pois a carta é levada e o sapato fica, descontextualizado. O sapato, como cada parte da pista, deveria ser considerado e trabalhado como objeto autônomo.

pistas nº11, marcelo terça-nada!pistas nº11, marcelo terça-nada!
pistas nº11, marcelo terça-nada!

Entre três e treze de maio de 2000, foi deixada uma ou duas pistas por dia naquele canteiro central. No dia quatorze aconteceu a montagem da escultura Descalços, o que marcou o fim da etapa das pistas. Não temos o menor controle ou notícia do fim que foi dado a nenhuma das pistas, mas veja bem, se algum desses objetos foi cuidadosamente visitado, se foi parar numa estante ou numa lata de lixo, não interessa tanto. O que interessa são as possibilidades, é ter podido intervir e modificar a relação das pessoas com o lugar, interessa é ter provocado acasos.

Imagine só uma pessoa andando na rua com um sapato onde está escrito em pequenas letras:

muitas ruas passam por mim
mas nunca chegam
ao meu fim*

*poema de Anderson de Almeida.

*Texto publicado na Revista Etcetera #14 – Artes Visuais